O IX Encontro Internacional Arte para a Infância e Desenvolvimento Humano decorreu em novembro. Trouxe do mundo vozes diferentes, e a noção de que a música é um mergulho nas capacidades que já temos

É tempo de aniversários: dois dos principais parceiros dos Encontros Internacionais Arte para a Infância e Desenvolvimento Social e Humano fazem anos. A Companhia de Música teatral celebra duas décadas; o LAMCI (Laboratório de Música e Comunicação na Infância) do CESEM (Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical), dez anos. E este é o IX Encontro, o número anterior à dezena, o número que antecipa a comemoração. Para todos os anos e projetos que aqui estão – lado a lado, são de facto muitos -, a figura de Edwin Gordon “foi fundamental”, como disse Helena Rodrigues no início de uma manhã que prefaciava um dia cheio de surpresas. “Estamos numa grande festa de anos.”

Como é habitual, há convidados, e os convidados convidam-nos a pensar. É o que fez Joanne Rutkowski logo que ocupou o palco e começou a partilhar a sua história. Abrindo a sua caixa pessoal de segredos, esta professora emérita em Educação Musical da Universidade Estatal da Pensilvânia, cuja investigação se tem vindo a concentrar na natureza do canto nas crianças, contou “como tudo começou” e para tal teve de virar-se para trás. Neste movimento, viu como, noutro tempo, uma jovem professora de música lidava com crianças dos 3 aos 5 anos no contexto de uma ‘aula’. “Quem era eu?”, perguntou-se Joanne, mostrando um vídeo onde surge entoando uma canção infantil e instando as crianças a imitarem-na. Em 2001, um ano sabático permitiu-lhe explorar outras práticas, olhar de novo para aquilo que estava a fazer. Leu Edwin Gordon, observou outros docentes, a forma como ensinavam. E mudou o seu ponto de vista: num vídeo de 2006, aparece numa grande roda de adultos e miúdos, todos no chão. As crianças vão entrando “num espaço musical” em que ninguém lidera nem fala – canta-se apenas.

“O que aprendi?”, interroga Joanne. “Aprendi a ver como é que as crianças aprendem uma linguagem”, corrobora. O modo como esta se desenvolve não é diferente da forma como a música entra – ou já lá está – nas nossas vidas. A comparação não deixa dúvidas, embora a abordagem perante ambas não seja sempre equivalente. Uma língua aprende-se num ambiente imersivo e rico na mesma, onde é fulcral a interação com os outros e o ‘gaguejar’ (o treinar a linguagem) antes de falar. Só após estas fases se começa a falar com sentido, a refinar a sintaxe e a gramática. Pela sua parte, se a música também requer que estejamos imersos nela e num vocabulário sonoro diversificado – “a música é um ambiente, não passamos um dia sem ouvir música” – recorda Joanne, é raro interagir com as crianças musicalmente, assim como é raro deixá-las ‘gaguejar’ sem as corrigir. Muitas vezes, o vocabulário falado invade o musical e as imitações ocupam o lugar da improvisação. “Comunicar a música não é só fazê-los repetir o que dizemos.”

Com o passar dos anos, Joanne percebeu que, no início, o conjunto de regras pelo qual se orientava estavam desajustadas. Resumidamente, ela pensava que as crianças tinham de participar nas atividades para aprender, que havia que esperar certas respostas, que elas deviam seguir orientações, ter disciplina e concentração. Do mesmo modo, achava que, como docente, devia servir-lhes de modelo, apresentar- lhes um repertório simples, ‘musical’, que elas pudessem cantar, colocando-se fisicamente em frente da turma. As novas descobertas viraram-lhe o mundo ao contrário: não só as crianças aprendem mesmo que não participem, como é preciso dar-lhes uma grande variedade de repertório do qual a complexidade não está de todo excluída. “Compreendi que sou uma parceira das interações musicais, que a comunicação pode ser não verbal. Dou atenção às contribuições delas, mas não as corrijo. E sou uma parte do grupo”, diz hoje.

Defende igualmente a ideia de que o professor é um facilitador do desenvolvimento musical natural e não um instrutor. Que mergulhá-las num ambiente musical é tudo quanto se deve fazer. Que não é o professor, mas a criança, que tem de ser ouvida. Que é preciso silêncio para que ela responda com a sua própria música. A transição de uma aprendizagem informal para outra mais formal “é um processo” não necessariamente cronológico, que depende de cada criança, pois “a idade cronológica pode não ser a musical”. Muitas vezes, frisa Joanne, fazemos tudo depressa demais.

Cada um realiza a sua viagem. Ana Isabel Pereira, que recentemente se doutorou em Ciências Musicais, na especialidade de Ensino e Psicologia da Música, veio ao IX Encontro oferecer “reflexões pessoais”. Falou do seu percurso no trabalho de compreensão da música na infância, do qual não faltou um curso sobre a aplicação da teoria de Edwin Gordon, a escola de verão da Universidade Nova de Lisboa, a colaboração próxima com a Companhia de Música Teatral. Falou também das sessões de “Música de Colo” realizadas no Laboratório de Música e Comunicação na Infância e das formações transitivas no âmbito do projeto GermInArte que a levaram a andar pelo país e que, referiu, chegaram a mais de 30 entidades e a mais de 700 formandos.

Doutorada em Educação Musical, e diretora do Centro de Desenvolvimento Musical na Infância da Universidade da Carolina do Sul, nos Estados Unidos, Wendy Valerio apresentou uma intervenção assente no título “From the classwomb to the classroom and beyond”. Esta discípula e colaboradora de Edwin Gordon e uma das autoras do livro Music Play falou sobre os três momentos que compõem a musicalidade humana: a aptidão, a aquisição e a ‘audiação’ – a audição e a compreensão musicais. “Os humanos foram projetados para fazer música”, afirmou, explicando que o sentido do ouvido “está totalmente funcional aos cinco meses, dentro do útero”.

Wendy discorreu sobre o que é ensinar música e as conclusões a que chegou após décadas de experiência. E partilhou com o auditório a convicção de que “não se pode ensinar nada, basta estimular e dar a oportunidade de ouvir”. O mais importante é encorajar a interação e perceber a relevância do silêncio, enquanto propósito ele próprio musical (não continuamos, todos, a cantar interiormente?). Como levar as crianças a interagirem musicalmente entre elas? “Todos, antes de nascermos, somos músicos. Ouvir é o trabalho mais importante de um músico. Todos os sons proporcionam oportunidades de interação musical e social”, reflete a professora. E só o medo – o medo de ‘musicar’ – é que nos pode condicionar.

“Sobre bebés e pássaros…e bebés pássaros” – foi este o título sugestivo da participação de Maya Gratier, professora de Psicologia do Desenvolvimento na Universidade de Paris Nanterre que tem vindo a desenvolver uma pesquisa sobre as relações entre o surgimento do canto nos pássaros e a aprendizagem vocal nos bebés humanos. E que concluiu que existem paralelos entre ambos. Há cinco anos que trabalha com etólogos no sentido de compreender as várias etapas deste paralelismo, gravando pássaros e bebés humanos e estudando os resultados. Maya estabeleceu os marcos cronológicos da perceção que se teve historicamente tanto de uns como de outros. Assim, em 1900, o bebé é visto como um ser passivo e confuso, enquanto se acredita que o comportamento animal é puramente instintivo. Em 1970, se ao bebé já se lhe atribui a capacidade de processar informação, aos animais é reconhecido que respondem a estímulos. Em 2019, a perspetiva muda totalmente: o bebé é um ser sensível e pensante, os animais seres cognitivos e sensitivos.

Alguns pássaros cantores demoram 90 dias para aprender a cantar – os bebés, 12 meses para dizer as primeiras palavras. Nos dois, existe uma “fase em que não produzem o som da espécie, mas estão a processá-lo e a organizá-lo”. A forma como os humanos chegam à linguagem é através da música, pelo que existem estádios do desenvolvimento vocal que vão do choro (a emissão de protosons ou sons com harmónicos em resposta aos adultos) e do balbuciar (a produção de sílabas e vogais juntas, o reconhecimento de palavras), ao falar os primeiros vocábulos, seguida de uma explosão do léxico e da elaboração das primeiras frases. Como é que um bebé humano e um pássaro aprendem a produzir sons que os levam a comunicar?, pergunta Maya Gratier. Respondendo: por meio da exposição, da imitação, da prática ao acaso e da interação socialmente guiada. “Os bebés nascem atentos. Olham e ouvem. E reconhecem sons que ouviram no útero. Estão equipados para a comunicação desde o nascimento”, afirma. Já os pássaros, sabe-se que, dentro do ovo, ouvem sons do exterior. E os próprios progenitores emitem sons específicos em frente a estes. Os bebés pássaro que não os ouviram desenvolvem o som de modo diferente – “não desenvolvem os sons típicos da espécie”.

A última estação do IX Encontro é o trabalho realizado pela Voarte pela bailarina Ana Rita Barata e o realizador Pedro Sena Nunes, sobre o papel no desenvolvimento humano da dança e do cinema, numa perspetiva de inclusão. Com vários projetos realizados e 20 anos de existência, a Voarte “procura caminhos de diversidade e novos métodos de explorar linguagens artísticas”. Uma das iniciativas que tem vindo a realizar chamou-se “Geração Soma”, um projeto social inclusivo que trabalha com crianças com necessidades especiais das escolas públicas, que teve como primeiro resultado a performance multidisciplinar “Eu Maior” – baseada na máxima de que “as crianças são as estrelas e as suas fraquezas se transformam em superpoderes”. Neste sentido, a proposta era a de redimensionar a sala de aula, desarrumando o espaço e pondo o corpo a movimentar-se nele, criando uma sigla resultante de três palavras com as quais a criança se descreve a si mesma. “A ideia era a descoberta da sua fragilidade e potencialidade”, dizem os artistas.

De que outra coisa fala, afinal, a arte? Paulo Maria Rodrigues expôs o projeto “Mil Pássaros, Mil Lugares” e as suas diferentes fases. A ação de formação inicial, que introduz o material musical “que as crianças vão poder ver”, com o manual que ensina a desencadear um processo de interação com os pais. A instalação, nas escolas, de um pé de pássaros pendurados feitos em origami pelas crianças. A peça Orizuro. A Conferência dos Pássaros. O PaPI-Opus 8. A instalação Inúmera Mão. E falou ainda do mais recente projeto da Companhia de Música Teatral: Murmuratorium (título este que remete para “murmuração”, evocando a forma como voam e soam alguns bandos de pássaros). Trabalhando com um grupo local de crianças e adolescentes (o projeto foi já realizado em Aveiro e nos Açores), Murmuratorium é montado ao longo de uma semana com crianças e adolescentes participantes num processo educativo que culmina numa instalação e em performances dirigidas ao público em geral.

O futuro, diz Paulo, é “fazer com que os pássaros continuem a existir”. E, nesse sentido, servir-se do grau de tecnologia sem par do mundo de hoje para gerar a nova geração de pássaros: o ciberpássaro, “uma opção cheia de vantagens”, do qual já há protótipo. Não disse Steve Bannon que o degelo é uma oportunidade de negócio? A isso vamos. Para lá caminhamos. No final do IX Encontro, uma soprano e um ciberpássaro provaram o impossível.

Luciana Leiderfarb